domingo, 2 de agosto de 2009

MEMORIAL DE EDIVÂNGELA


GESTAR II – PORTUGUÊS


EDIVÂNGELA FERREIRA DE SOUZA RODRIGUES
Filha de uma mulher guerreira que lutou para superar os obstáculos de uma época onda a educação não era considerada prioridade. Essa mulher, minha mãe Luiza, tornou-se professora leiga e iniciou suas atividades docentes em nossa própria casa. Naqueles dias não existiam muitas creches, escolas infantis, hoteizinhos, nem tão pouco cursinhos com aulas de reforço ou isoladas. Não sei como conseguiu avançar tanto! Sei apenas que apesar de muito difícil, fez uma parceria com a prefeitura e dava aulas para turmas multisseriadas com alfabetização de crianças, jovens e adultos em uma sala ampla em nossa residência. É interessante dizer que os alunos recebiam a merenda escolar cedida pelo município. Cabe ressaltar que essa prática era muito comum para os distritos, agrovilas e ou cidades que não tinham estruturas com prédio escolar. Nesse caso, o fato espetacular reside na questão de morarmos praticamente no centro da cidade de Juazeiro-BA. Quero resumir esse parágrafo elogiando minha mãe por ser uma grande empreendedora (penso que foi uma das pioneiras em matéria de escolas – hoje é um sucesso nacional) e, por nos permitir nascer em um lar cuja educação era e continua sendo o alvo.

Nesse universo fui criada e educada, passando a ser auxiliar de professora desde os seis anos de idade, visto que já sabia ler e escrever muita coisa. “Filha de professora tinha que ser exemplo” dizia sempre toda orgulhosa. Com anos de carreira no “magistério”, aos doze anos eu já tinha minhas turmas formadas e tratava de alfabetização de adultos. O método era o mais tradicional e símples possível. Garanto a vocês: dava certo e todos aprendiam a ler e escrever o básico. Recordo-me que usamos a cartilha do ABC que trazia alfabeto, consoantes, vogais, padrões silábicos simples, travados, complexos e findava com formação de palavras. Usamos também o ABC luxuoso dos animais e das aves. Eram lindos e coloridos com gravuras que nos deixavam encantados. A de águia, B de borboleta... Z de zebra. Outro encanto era a Cartilha do Povo. Trazia textos com exploração de palavras e padrões silábicos e, sobretudo, lições de vida. Lembro-me perfeitamente a história de Frederico o preguiçoso que peregrinou à procura de alguém para desfrutar do tempo roubado dos estudos para brincar, mas nem as formigas pararam de trabalhar para fazer-lhe companhia, visto que tinha “filado” as aulas. A tabuada era o forte do momento e apesar de nunca ter levado nenhum bolo, para minha vergonha hoje, admito que incentivei muitos alunos para que estudassem a fim de não levar bolos com a palmatória dos coleguinhas de sala. Não tive culpa desse processo. Fui professora mirim (status) e apenas reproduzi o sistema. Uma coisa é certa: “por medo de apanhar, passar constrangimento ou vergonha, decorando ou não, o povo sabia a tabuada”.

Por volta dos 14, 15 anos, comecei a sonhar em ser advogada ou psicóloga, mas como não existiam estes cursos na região, optei por fazer o magistério e em seguida por pedagogia (turma pioneira da FFPP). Sem frustração alguma, embarquei nessa viagem dos nobres e cultos pedagogos. Ao iniciar minha carreira propriamente dita, passei por situações excessivamente delicadas e contraditórias às orientações dos teóricos.

Ao ser convocada pelo estado de Pernambuco, tive que assumir as primeiras turmas no Projeto Caraíbas na Agrovila 12 em Santa Maria da Boa vista. Algo SURREAL – classes multisseriadas e turmas de EJA. Consegue imaginar a professora com 18 anos dando aula para cerca de 40 alunos à noite, todos adultos ou jovens com mais idade que a professora? Confesso que minha sorte foi em primeira ordem, a escola da vida que aprendi dentro de casa com o exemplo de minha mãe, em segunda, a novela da Rede Globo que passava a história da professorinha e o Sassamutema (o Salvador da Pátria), que trazia lições de cidadania, respeito às diferenças e manutenção da identidade do indivíduo para não se deixar levar pelo conformismo, pelo paternalismo e outros ismos da vida. Mas o advento do grande Paulo Freire foi um marco para minha trajetória. Fiz muito pelo social daquele povo que aprendi a amar, valorizar, respeitar e a crescer junto.

Um nome bem conhecido na época era o do radialista Guanay Atanásio que tinha um programa famoso “meloso/dramático” que lia cartas de amor daquelas do tipo: ...vivíamos um pra o outro até que... Lágrimas, sangue, traições, mortes, reencontros. Foi um “melô” que me ajudou a definir a metodologia de trabalho. Todos queriam aprender a ler e escrever apenas para fazer as suas catinhas e enviar para o Guanay Atanásio. Que sorte a minha! Tratei de trabalhar, assim como Paulo Freire, em vez de TI-JO-LO! GUANAY! Foi um sucesso. Eu era a professora, a amiga e também o pombo-correio. Em parceria com minha colega de casa (morávamos na agrovila 12) consegui levar o grande locutor, radialista e preparador técnico do Petrolina para uma partida de futebol de campo com os moradores das 42 agrovilas. Nada menos que Guanay e seu famoso time, cerca de trinta e cinco homens, foram jogar na nossa agrovila contra o time formado pelos moradores das 42 vilas de reassentados no Projeto Caraíbas. Foi algo de novo SURREAL. Imaginam que não dava para contar o número de carros, caminhões e pipas, carroças, cavalos, motos e bicicletas que lotaram a nossa pequena vila pra o grande jogo! O sonho do povo estava realizado. As cartas? Continuaram sendo escritas, idas e ouvidas com lágrimas ou sorrisos, mas depois do jogo amistoso tudo ficou mais real para eles.

Pena que toda essa festa teve que acabar. Nesse período eu já era estudante de pedagogia e não poderia continuar morando distante da FFPP e tive que apelar por uma remoção. “Coisa” que consegui em poucos meses graças a Deus e à ajuda de um grande político da Bahia. Depois disso, passei pelo Projeto Bebedouro e pelo Projeto Nilo Coelho, C-3. Finalmente saí da zona rural e confesso que foi um salto para o futuro. Já formada em pedagogia com habilitação em Administração e Supervisão Escolar, recebi convite para ser gestora da Escola Dom Malan. Ao término do mandato, mesmo recebendo convite do grupo de oposição para continuar na direção ou compondo a equipe gestora, preferi assumir sala de aula e coordenação do laboratório de informática. Fui encorajada a fazer seleção para Educador de Apoio e há sete anos desenvolvo a função com bastante garra e determinação.

Procuro sempre fazer o melhor, embora saiba muito pouco sobre tudo, inclusive sobre a Língua portuguesa. Importa dizer que sou profissional feliz e que sonha em fazer o mestrado, cultivar amizades e aprender a nossa língua. Estou há vinte anos fazendo parte da educação em Pernambuco e continuo apaixonada pelo que faço, pois acredito ser bom para a humanidade.